quarta-feira, maio 13, 2009

Os mortos do Maranhão

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Até agora foram quase 50 mortos nas enchentes do Nordeste, a maioria no Maranhão. Há milhões de desabrigados. E quantos mortos pela nova gripe? No Brasil, zero.
Mas o que mais ocupa destaque na grande mídia? A nova gripe.

Em 1985, nada menos que 25 mil colombianos foram sepultados vivos! Um vulcão despejou uma avalanche de lava e rochas sobre toda a cidade de Armero. Alguém se lembra? Duvido.

Mas quem esquece os mortos de Columbine? E de outras tantas escolas dos Estados Unidos? E dos reféns norte-americanos no Irã no auge da ditadura dos aiatolás? Muita gente lembra, sim.

E os milhares de afegãos mortos por tropas norte-americanas? Os iraquianos, os palestinos (mortos por Israel, mas o terrorismo de Estado é, por tabela, trade mark dos Estados Unidos).

Mortos famosos? Frank Sinatra. John John Kennedy. Marylin Monroe. Se bobear, até o genocida George W. Bush vira santo. Ninguém esquece. Ou pior: é forçado a não esquecer.

E tem os mortos das torres gêmeas. Uns 3.600. Muitos de outros países.
Não dá pra esquecer, né? Mas e os milhões de mortos em Rwanda? E outros milhões exterminadas nas guerras de fome e de fome de poder África adentro? Não se conta.

Quanto vale um morto?
Quanto vale um morto para pesar em nossa memória?
Quantas centenas de chineses mortos num terremoto valem um bandido executado por um policial no império dos Bush?
Quantas dezenas de geniais Marisas Montes valem uma boneca inflável de motel como Britney Spears?
A morte de um coadjuvante de filme B norte-americano vale encerrar o Jornal Nacional. O falecimento de alguns dos grandes nomes da nossa arte virar nota coberta com foto e créditos com as manjadas datas de nascimento e morte?

Quanto vale um corpo eu bem sei. Se o morto é norte-americano vale muito, mesmo que seja um simples faxineiro. Se for um grande nome de um país pobre ou em desenvolvimento vale nada.

Que os estados Unidos valorizem seus mortos, vá lá. Agora, a grande mídia brasileira - bem como de outros países cuja imprensa ainda trabalha como colônia cultural - repetir feito papagaio tudo que se diz na "Corte" é deprimente. Entre nos grandes sites nacionais e você saberá fofocas de pessoas cujo nome você nunca ouviu falar. Mas estão lá: em flagrantes incríveis indo às compras; puxando a alça do sutiã numa praia do Caribe; mudando de parceiro, etc. E assim é com os mortos.

Os mortos do Maranhão são como os do Afeganistão, os de Armero, os do Tsunami (assustador: mais de duzentas mil pessoas perderam a vida!).
Os mortos da enchente do Maranhão valem menos que os da enchente de Santa Catarina.
Será que a Record está fazendo campanha pelas vítimas dessa enchente, como fez em Blumenau? Será que Ana Maria Braga fez transmissão ao vivo de São Luís? Eu não vi.

Os mortos do Maranhão não dizem muito aos donos daquele Estado-dos-Sarney.
Mas será que a imagem dos Sarney já não anda alagada demais para aparecer na mídia? E como eles são donos da mídia, não seria surpresa um controle do que se passa na imprensa do Sudeste. Assim como se faz aqui nas Minas de Aécio - o homem que criou em volta de si uma suspeitável unanimidade política -, provavelmente nosso futuro Collor.

Nós, cidadãos mineiros, não devemos apenas nos preocupar e enviar ajuda aos conterrâneos da Sarneylândia. Precisamos também ficar atentos para que, como os mortos do Maranhão, não sejamos vitimados por essa Aeciolândia, sustentada por uma imprensa que se cala a qualquer preço.
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segunda-feira, maio 11, 2009

MÃINHA

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Já fiz poesia para amigos, painho, coisas, animais e outras tantas coisas mas, não consegui ainda fazer um poema sobre mãinha. Sempre apago logo que termino um ou dois versos.

Não se trata apenas do fato de que não há papel nem palavras que sirvam para definir a impressionante e inesgotável fonte de bondade, gentileza e inteligência que ainda brota todo dia daqueles olhos tão vividos. É algo muito além disso.
Mãinha perdeu o marido três meses depois de dar à luz seu décimo filho. Sim, eu não conheci painho. Somos de Jacaraci, sul da Bahia. Ela trouxe todas as crias para Montes Claros. Medo de que os mais velhos vingassem o assassinato do pai. Uma nobre. Educadíssima. Minha mãe é assim.

Passava dia e noite pedalando uma máquina de costura – pedal mesmo nas velhas Singer – para não deixar faltar água, comida, roupa limpa e escola para todos. E nunca faltou. Da parte dela, nada faltou. Se o assunto é mãinha, a palavra ausência não tem tradução no dicionário da nossa família. Ela nunca deixou de estar, muito menos de SER mãe.

Sempre forte e nobre. Os filhos nem tanto. Sempre demos muito trabalho a Dona Lia. Éramos todos moleques, no bom sentido da palavra. Mas nunca nenhum de nós se envolveu com coisas ilícitas. Os mais velhos transportavam carvão para ajudar nas despesas. Alguns se casaram, outros se mudaram... E a vida foi nos afastando da convivência diária com a nossa mãe.

Ela perdoa nossas falhas. Rainha da misericórdia! Mas o tempo, não. Perdemos um dos nossos queridos irmãos e, no velório, não me esqueço do momento em que alguém pediu para que ela não chorasse tanto, pois “um morreu, mas a Senhora ainda tem nove”. Mãinha então respondeu com os olhos brilhantes: ”mas desfez minha cirandinha”.

Completou 84 anos neste primeiro de maio. Ainda lúcida e exercendo seu papel de matriarca, mas com incomparável amabilidade. Uma psicóloga autodidata. Ela é toda uma obra-prima com o que há de melhor e mais puro na humanidade. E ainda borda, faz crochê e tricô; é quem prepara o melhor biscoito, o mais saboroso frango e os melhores doces que já provei. De manga verde, de leite, e do meu preferido: de mamão.

Quando eu disse a ela que fui demitido da empresa à qual eu dediquei quase metade da minha vida (tempo e empenho) por não concordar nem participar de procedimentos que ferem a ética profissional e os meus princípios, ela escondeu a preocupação com a questão financeira, e abriu um sorriso reto; disse "sim" com a cabeça, apertou os olhos e me abraçou. Ela sempre diz: "meu filho, a única coisa que pobre tem é o nome". Nome limpo, ela quis dizer. Honra.

Os princípios... Mãinha nunca nos obrigou a decorar os dez mandamentos. Ela nos ensinou muito mais que dez com seus exemplos. Nunca nos impôs presença em cultos e rituais religiosos. Sábia, nos ensinou com seu silêncio respeitoso que para ser honesto e fazer o bem não é preciso pagar as contas de padres nem de pastores. Mas cultivou em todos nós a tolerância. Ela, católica devota de Nossa Senhora Aparecida, ama os filhos: tem evangélico, ateu, espírita e até católicos. A religião à qual Mãinha nos batizou chama-se tolerância!

Minha mãe é uma árvore que estende seus galhos para o pouso seguro das aves, para as garras afiadas de outros tantos bichos... Fornece alimento com fartura. Folhas, sementes, casca, seiva, frutos e até as raízes se preciso for. Nos cobre de sombra sem nos tirar a luz.

Sempre preocupada com todos, cobra dos filhos mais ajuizados que nunca abandonem os demais. Ela sabe, nunca abandonaremos. Nós, os filhos, somos de pouca expressão de afeto e palavras, e apesar das desavenças somos todos pedaços de uma mesma brevidade. Daquelas que só mãinha sabe fazer.

A gente deve muito a ela. A gente deve tudo a ela. Mas é assim mesmo. Ela nos passou um bem que não tem preço, e não há como retribuir à altura. Vamos tentar nos esforçar mais, com certeza.

Agora eu percebo por que não consigo descrever Mãinha num poema. Ela sabe que sou ateu, mas nela eu acredito. Nela eu tenho fé. Se há alguma comparação que eu possa fazer a essa mulher que me dá vida até hoje é com o deus dos que traduzem a divindade como sinônimo do bem. De um bem maior. Falam tanto de deus em sua ausência. Talvez, quando eu não puder mais ver mãinha, eu consiga escrever mil bíblias para que todos tentem entender e acreditar que é possível todo o bem e todo o amor habitarem um só ser vivo.
Maria Alves de Freitas, te amo além dos limites da eternidade.
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